Usina de Letras
Usina de Letras
135 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62214 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13569)

Frases (50608)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140799)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6186)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Lepra -- 12/02/2000 - 00:14 (Ciro Inácio Marcondes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Tudo começou quando ela veio me mostrar os lábios inchados. A princípio, pensei não ser nada. Disse que era o sol. Foi o sol, filha. Não fique muito exposta ao sol. Você pode pegar queimaduras. Foi o que eu disse. Minha filha tinha cinco anos.
Com o tempo, alguns outros sintomas foram aparecendo. Os olhos ficaram também inchados, o nariz começou a sangrar. E não parava. Ela teve febre. Eu pensei que era o calor, a praga. Mas não. Era um castigo de Deus, por eu te me aposentado. Era lepra. E eu era o culpado. O fracassado. Era eu que tinha me aposentado. Desistido da batalha. Minha filha sofreu por isso. Muito. A notícia correu o reino. Praga de lepra. Todos estavam com medo. A doença dos demônios. O sopro deles. Não havia como escapar. Mas eu ainda tinha esperanças.
Lembro-me da vez em que constatei de verdade que minha filha estava com lepra. Ela estava triste, sozinha. Doente. Os sintomas mais graves ainda não tinham se desenvolvido, mas ela estava muito abatida. Levei-a à feira, para podermos assistir a algumas brincadeiras. Chegamos então a um palhaço, que estava se apresentando na praça. Era um dia ensolarado. Ainda não tínhamos bebido água e tínhamos sede. O palhaço estava lá, vestido numa enorme roupa preta. Enormes sobrancelhas negras estavam pintadas na cara dele. Seus lábios estavam vermelhos. Nos aproximamos da multidão, que ia colocando seus pertences na caixa de pagamento do palhaço. Eu levei algumas roupas velhas. Pus na caixa também, e ultrapassamos a linha. Ele era divertido, mas estava visivelmente cansado. Mal conseguia fazer malabarismos com três laranjas. Minha filha, Anelita, ficou assistindo a tudo parada, sem se mexer. O palhaço repentinamente mudou de expressão. Parecia ainda mais cansado. As outras crianças riam sem parar, mas ele não parecia satisfeito com a seriedade de Anelita. Então, se aproximou e a puxou pelo braço. Deu um beijo em seu rosto. Ela sorriu. Então, logo depois, com uma cara de nojo e espanto, ele gritou:
- LEPRA! ELA TEM LEPRA!
Todos saíram correndo, desesperados. Naquela tarde, a feira praticamente se desmontou toda. Centenas de pessoas passaram correndo, pisando umas nas outras, desesperadas. A palavra “lepra” parecia invocar uma maldição, como se um dragão ou algo parecido fosse engolir a cidade e submergi-la em trevas. Eu fiquei apenas lá, parado, abraçado à minha filha. Ninguém nos acertou ou nos pisoteou. Eles apenas queriam sair dali. Correr para longe dali. E foi naquele dia que eu constatei que Anelita estava realmente doente. E precisava ser curada. Era minha filha.
Durante as semanas seguintes novas revelações ocorreram. Centenas de outros casos de lepra apareceram. Era um novo ciclo da doença que se iniciava. Os Cavaleiros Nevaltesinos foram obrigados a patrulhar a cidade atrás de doentes, para levá-los embora da vila. O medo da chegada daqueles estranhos guerreiros era tão grande que todo o reino ficou em alerta. Um deles chegou até a minha porta. Minha filha estava dormindo na cama de palha, lá dentro. Bateram três vezes na porta. Três toques fortes e firmes. Não podia ser gente da vila.
- Olá... - Disse eu, quando abri a porta. Um enorme cavaleiro de armadura negra estava em frente a ela. Eu sabia que era um dos Nevaltesinos. Apesar de nunca antes eles terem aparecido na vila, eu já os tinha visto quando fui um dos camponeses recrutados para a última grande batalha contra o Sul. Fui um dos únicos a sobreviver. Os Nevaltesinos cuidaram sozinhos de todos os inimigos. E ele estava lá, grandioso, imperioso, parado na minha frente, à porta de minha casa. Parecia sobrenatural. A armadura parecia extremamente quente, e pesada. Mesmo assim, reluzia diante da luz solar. O elmo causava-me calafrios. Parecia um cavaleiro da morte.
- Bom dia. - disse ele - Estamos procurando doentes. Há doentes por aqui? - naquela hora, meu coração quase parou. Eles levariam minha filha doente, seja lá para onde fosse. Não havia nada que pudesse ser feito. Naquela fração de segundo antes de minha resposta, pensei em centenas de possibilidades de entregá-la. Pensei no bem do reino, no fim da praga, com o fim dos doentes. Pensei também em Deus, que estava tirando minha filha de mim graças à minha covardia. Deus era justo e bom. Eu devia segui-lo...
- Doentes? Que tipo de doentes vocês procuram?
- Doentes de lepra. Leprosos. Aqueles que possuem a marca do diabo. Temos que exterminá-los antes que esse mal se aposse de nós. Por favor, não nos faça invadir sua casa. Se houver algum leproso em sua casa, não hesite em nos entregá-lo. Faça-se um servo da boa graça divina.
Pensei durante mais um minuto. Eu não sabia o que fazer. Se hesitasse por mais de um segundo, ele invadiria minha casa e levaria Anelita. A justiça divina seria feita e o demônio estaria expulso de minha casa. Era meu desejo... mas eu não sabia. Lembrei-me novamente do rosto claro e loiro de minha filha. Lembrei-me de sua mãe, que também morreu doente. Eu não sabia o destino de Anelita que, tão pequena, havia sido corrompida pelo diabo. Eu não queria me separar dela. Hesitei mais um segundo. Meu rosto se encharcou em suor, e eu respondi:
- Não, senhor. Não há doentes por aqui.
- Mesmo assim, eu quero verificar. - disse ele, entrando na casa e me afastando da porta. Para meu espanto, outro cavaleiro negro saiu de trás dele e entrou na casa também. Suspirei. Justiça seria feita, afinal.
Andaram pelo estreito corredor de barro que dividia os dois quartos de minha casa e entraram no quarto de Anelita. Estava ela lá, suja, deitada, dormindo sobre a cama de palha. Junto com ela haviam mais dois porcos que seriam nossa refeição por mais algumas semanas. Os dois cavaleiros entreolharam-se curiosos, sem jamais tirar o elmo negro, e agacharam-se diante de Anelita. Viraram-na e tiraram sua roupa. Ela ainda estava dormindo, como um anjo que caíra na terra por engano. Olharam algumas queimaduras no peito dela, os lábios inchados, as olheiras. A temperatura alta. Eu estava junto à entrada, apenas observando tristemente sem pensar em nada. Então, eles começaram a falar:
- É uma bonita menina. - Disse o primeiro, que atendi junto à entrada da casa. - Como se chama? - Perguntou ele, sem tirar os olhos de Anelita.
- Anelita. - Respondi.
- Anelita. - ele olhou - É realmente um bela menina. Quando crescer dará filhos fortes e saudáveis para o império. Certo?
A pergunta me pegou de surpresa. Eu não sabia se ele estava sendo irônico, ou se estava falando sério. Anelita continuava a dormir e o outro cavaleiro continuava sem nada dizer. O primeiro estava olhando para mim. O elmo, junto às sombras do quarto, parecia ainda mais assustador. Por um momento pensei ter visto olhos vermelhos brilhando de dentro dele. Porém, não passou de uma alucinação.
- Sim, senhor! Com todo prazer entregarei ela a vocês assim que completar quinze anos para que procrie guerreiros fortes para o reino. - Respondi. O cavaleiro se virou novamente para minha Anelita. Olhou para o outro:
- Ela está doente?
- Não. - Respondeu o outro. Pela primeira vez ouvi sua voz. Era cavernosa. Mais grave que a do outro. Ele parecia ser mais velho e experiente.
- Tem certeza? E o que são essas queimaduras aqui e aqui? E este abatimento? - disse o outro, mostrando as queimaduras no peito de Anelita.
- São coisas de criança. Ficam muito tempo expostas ao sol. Por isso ficam abatidas. Não é lepra. Quando crescer, será uma boa procriadora. Uma bela mulher. - Disse o segundo cavaleiro, se levantando e fazendo menção de ir embora. Eu estava surpreso. Anelita estava com lepra, e eles não a identificaram. Foram embora, e eu continuei com minha maldição divina. Além de covarde, eu era um mentiroso. Tinha mentido aos cavaleiros do reino, sob o qual eu tinha vivido com tanta honra durante toda a minha vida...
Fui até a porta ver como estava a vila. Os dois vieram numa carroça, montados nos cavalos. E atrás estavam dezenas de leprosos, recolhidos da vila. Minha casa era uma das últimas. Eu vi muitas pessoas sorrindo, por terem se livrado do demônio que vivia em suas casas. Algumas outras estavam tristes, por causa da dura pena divina. Todos nós éramos pecadores, e precisávamos pagar pelos nosso pecados. Os guerreiros da Nevaltésia se foram, levando com eles quase todo o mal presente em nossa pequena vila. Quase todo o mal. Não todo. Ainda havia uma pequena parte dele dormindo dentro de minha casa. Minha filha. Aquela que poderia disseminar a doença por toda a vila novamente. Eu era um servo do demônio. Não podia fazer nada. Tinha que sair da cidade. Tinha que ir embora. Expulsar o mal da vila.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

Uma semana depois, preparei Anelita para a viagem. Carreguei uma mochila com mantimentos, roupas e provisões. Era alta noite e eu ainda não sabia para onde iria. Ela estava uma graça. Limpei-a com água do poço, vesti-a com roupas limpas. Lavei os ferimentos. Estava pronta.
- Para onde vamos, Papai? – Ela me perguntou.
- Vamos viajar, minha filha. Vamos para um lugar melhor. - Eu disse aquilo com firmeza, mas não consegui esconder a tristeza. Eu sabia que minha filha não demoraria a morrer. A lepra é uma praga cruel e devastadora. Eu já pensava nela se deteriorando, se transformando numa horrível monstruosidade, como diziam as antigas histórias. Pensava em sua alma sendo torturada no inferno, e no pecado que cometi ao não entregá-la para a salvação divina, para o perdão. Meu coração se encheu de mágoa. Tive vontade de levá-la aos cavaleiros negros, mas eles já estavam longe, e eu não sabia para onde tinha ido. Eu precisava de um destino.
Dirigi-me então à casa de Petran, um velho amigo meu, que também havia participado da última guerra contra o Sul. Já devia passar da meia-noite, e não havia ninguém nas ruas. Olhei para a vila: vazia. Iluminada pelo luar, parecia ter sido devastada por uma enorme névoa que devora apenas as coisas vivas e deixa as coisas não-vivas intactas. Eu senti um enorme vazio na hora. Atravessei mais algumas ruas. Todos estavam dormindo naquela hora. Bati forte na porta e escondi-me no beco, para o vizinhos não me verem. Petran abriu a portinhola pouco depois. Seus olhos aparecerem e eu pude ouvir:
- Quem está aí?
De súbito, eu apareci com Anelita nos braços, envolta num manto:
- Sou eu, Petran. Abra. Preciso de ajuda urgente! - falei, cochichando. Petran abriu a porta e nos acolheu para dentro. Tinha, obviamente, uma expressão preocupada, e continuou cochichando:
- O que foi, Amadeu? Qual é o problema?
- Petran, eu preciso de ajuda urgente! - Disse eu, botando minhas mãos em seus ombros. Eu estava desesperado.
- Sente-se, homem! E fale! - disse ele, puxando uma cadeira para mim. Ele sempre foi um homem firme e decisivo, próprio para situações sem solução. - Quer que eu coloque ela para dormir lá dentro? - continuou, apontando para Anelita.
- Não. É exatamente por causa dela que estou aqui. - disse eu, com a cabeça baixa. Ele se aproximou e pegou cuidadosamente Anelita nos braços. Retirou o manto. A lepra ainda não estava visível, mas os sintomas eram óbvios.
- Deuses... ela tem.... - Petran não conseguiu completar. Pude perceber seu abatimento quando percebeu a verdade. Era um homem velho e experiente. Havia participado de uma guerra, e havia visto muitas pragas ao longo de sua vida. Sabia os sintomas da lepra. Lançou mais um olhar, terrivelmente penoso. Devia ter já seus quarenta anos, e não viveria muito mais. Era dez anos mais velho que eu. Um amigo de longa data.
- Sim. E eu não sei o que fazer.
- Amadeu! Você está louco? Por que não a entregou aos Nevaltesinos?
- Eu... não quis... eu...
- Meu Deus, homem! Tem idéia do que fez? A única salvação para a menina era entregá-la! Os homens do rei poderiam curá-la.
- Petran! Ela é minha filha! Eles iriam separá-la de mim... eu não pude...
- E agora? Você sabe que a doença vai se desenvolver. E que ela vai morrer! O que você vai fazer? Você pode pegar lepra também. Você pode infectar toda a vila! Ela vai morrer!
- Eu... sei que vou pagar por meus pecados.
- Não é questão disso, Amadeu! Se te descobrem, é um homem morto! Como pretende sair dessa situação?
- Foi para isso que eu vim aqui, mas... se você desejar, vou-me embora agora mesmo.... - disse eu, sem ter coragem de olhar diretamente em seus olhos. Ele olhou para mim, ainda nervoso, e triste.
- Calma. Acharemos uma solução. Essa menina tem que ser levada daqui. Eu sei que a ama muito, mas terá de se separar dela. Não há outra forma.
- Mas... como?
- Eu sei de um lugar onde ela poderá ficar. É depois da vila. Lá ficam todos os leprosos refugiados. Lá ficam todos aqueles que fugiram do rei e da salvação divina.
- Está se referindo ao poço?
- Sim.
- Não!
- Prefere matá-la ou ser pego pelo rei, onde os dois morrerão?
- Não! Mas... o poço é muito horrível para ela... lá existem apenas restos de almas humanas... não são pessoas... são demônios... monstros horríveis sem pele e... não! Minha filha não pode ir pra lá! Ela será uma linda jovem, e gerará bravos guerreiros para nosso reino! - Petran parecia perceber meu desespero. Cada vez estávamos falando mais alto. Anelita ouvia tudo, sem entender o que se passava. Tossia um pouco. Estava assustada.
- Não há como ser de outra forma. Eu sinto muito. Se não levá-la ao poço, as autoridades a descobrirão cedo ou tarde. Muita gente, inclusive eu, pode morrer por sua causa, Amadeu. Pelo menos para os que estão lá o rei não liga. Ele sabe que a praga não vai se espalhar.
Comecei então a chorar. Eu sabia que era vergonhoso e fútil para um homem, mas era a única coisa que eu tinha a fazer. Estava condenado por Deus e minha filha teria um castigo pior que a morte. Viveria como um animal dentro de um buraco cheio de animais. Não sobreviveria por mais de dois anos com a doença. Jamais seria bela.
- E se eu voltar? Se me ajoelhar? Se pedir perdão ao rei e aos cavaleiros? Se entregar minha vida por isso?
- Droga, homem! Você sabe que os dois morreriam por causa disso! O rei não perdoa ninguém! São as leis divinas! Você tem idéia do que fez? Você confrontou Deus! E pare de chorar que isso me irrita! Isso não é atitude de um homem.
Então, nos calamos por alguns instantes. Petran parecia tentar pensar, e eu apenas olhava para sua casa. Uma mesa de madeira negra estava posta no centro, com algumas cadeiras ao redor. Anelita estava sentada em uma delas, assustada. Olhei então para a porta que dava para dentro da casa: lá estava Tânia, a esposa de Petran. Estava lá desde o começo, mas nenhum de nós a havia percebido.
- Grande Deus... - disse ela, após perceber que eu a tinha visto.
- Tânia? - virou-se Petran. - Droga, mulher! Você não podia ter escutado isso. Não conte nada disso a ninguém, ouviu? Ninguém!
- Sei disso, meu marido. Sei da seriedade da situação. A menina tem que ser levada daqui. - disse ela, quase tão firmemente quanto o marido.
- Não há nada que você possa fazer por nós, Tânia? - perguntei, quase suplicando. - Você, que conhece tantas curas...
- Infelizmente lepra não tem cura, Amadeu. Não é uma doença. É uma maldição horrível. Algo de muito ruim você deve ter feito para que sua filha pague o preço.
- Eu não sei! EU NÃO SEI! Eu sempre servi ao rei dignamente, sempre forneci tudo que plantei a todos os outros súditos! Nunca perdi uma missa sequer. Nunca deixei de rezar uma noite sequer! Eu não entendo! - falei, desesperado.
- Temos de levá-la ao poço logo pela manhã, Amadeu. Você dorme aqui. Partiremos logo cedo. Não há nada que podemos fazer além disso.
Então, não havia então mais esperança. Petran indicou-me um quarto reservado para hóspedes e viajantes. O terceiro de sua casa. Era melhor remunerado do que eu. Geralmente cobrava pelo quarto, mas desta vez abriu uma exceção, devido à minha situação complicada. Entrei no quarto junto com Anelita, que estava muito assustada. Era pequeno, e possuía duas camas bastante confortáveis. Petran, pouco depois, trouxe também uma jarra com água e duas canecas, para ficarmos à vontade. Havia também um quadro com uma oração - que eu não compreendia, pois nunca soube ler - pregado na parede. Acho que Petran também não sabia ler, mas uma oração sempre traz bons ventos. Ele fechou a porta e desejou-nos boa noite. Disse que sairíamos cedinho, às cinco da manhã. Eu tentei dormir, mas não consegui.
De repente, uma toque surdo e rápido soou de minha porta. Levantei-me assustado. Anelita ainda dormia. Abri, pensando ser Petran, mas não era. Era Tânia. Ela me chamou para fora, usando apenas as mãos, e fez um sinal para que ficasse em silêncio. Eu a segui até o lado de fora da casa. Andei com ela por mais um tempo, sem dizer nada, até que chegamos a um beco, por onde entramos.
- Fale baixo. Ninguém pode ouvir isso, senão nossas vidas correm sério perigo. - disse ela, em tom de voz baixo. Era uma mulher ainda moça, com seus vinte e dois anos, e muito respeitada em toda a vila. Era tudo aquilo que um homem desejaria em sua esposa: capacidade de decisão, inteligência e beleza. Foi a terceira mulher dele. As outras duas morreram em outras pragas. Sempre foi também muito requisitada por seus dotes médicos. Conhecia como ninguém na vila as curas pelas ervas, e ajudava a todos que necessitavam. Era realmente muito boa.
- Sim. O que você tem a dizer a esse pobre e condenado homem, Tânia? - perguntei, ainda envergonhado pelas cenas humilhantes da última noite.
- Eu sei de uma maneira de curar sua filha, sem precisar levá-la ao poço. - ela respondeu. Naquele momento, meus olhos se arregalaram. Milhares de maneiras de curar Anelita tentaram passar por minha cabeça, mas nenhuma se concretizou. Nunca soube de um caso de lepra que já tivesse sido curado, e simplesmente eu não imaginava como poderia acontecer..
- Sabe? Como? - respondi.
- Através de meu mestre. - ela disse, em tom misterioso.
- Seu mestre? Que mestre? - perguntei, intrigado.
- Venha cá. – respondeu ela, ainda em voz baixa, fazendo um gesto com a mão e me levando até um canto ainda mais escuro do beco. - Você não pode contar isso a ninguém. A ninguém mesmo.
- Nem mesmo a Petran?
- Não! Principalmente a ele.
- Mas o que pode ser tão secreto assim que nem mesmo um homem nobre e seu marido como Petran pode saber?
- Você ama mesmo sua filha?
- O quê?
- AMA mesmo sua filha? – reforçou ela, em tom rígido. Chegou até mesmo a levantar um pouco a voz. Era uma mulher jovem, mas firme.
- SIM! - Respondi, também levantando um pouco a voz.
- Então jure pelo Rei e por Deus que o que será falado aqui não sairá daqui sob hipótese alguma.
- Sim! Eu juro. Por Deus e pelo Rei. Dou minha palavra, como homem que sou.
- Bom... - Suspirou ela.
- Sua filha pode ser curada... com magia.
Naquele momento, meu coração disparou. Dei, assustado, três passos para trás. A simples idéia de ver magia perto de mim sempre havia me apavorado. Fiquei mudo por alguns instantes. Fiz que ia correr, mas consegui manter-me dentro do beco. Olhei novamente para Tânia: não parecia mais a mesma mulher... parecia um demônio horrível... vindo das profundezas do pior dos infernos.
- Você... é um bruxa? - disse eu, sussurrando. Meu medo era eminente.
- Mantenha-se calmo, Amadeu. Vou explicar tudo. - Respondeu ela. Mas eu não conseguia ouvir. Estava tomado por medos e pensamentos terríveis. Apenas a menção da palavra “magia” era o suficiente para me causar horror.
- UMA BRUXA, MULHER? - Eu disse, levantando a voz. Depois disso, olhei para os lados. Percebi que tinha feito uma besteira. Com sorte, ninguém havia ouvido.
- Acalme-se! Eu não sou uma bruxa. Não pense nisso. Não quer sua filha de volta? Não quer sua filha viva? Você jurou em nome de Deus! Controle-se homem!
- M-mas... mas é horrível demais! Não pode ser! Eu sempre estive com vocês! Sempre fui amigo de vocês! E nunca percebi! Petran nunca percebeu também? Ou ele... ele é um bruxo também? - Eu estava confuso e desorientado. Meu coração batia forte e rápido. Por algum motivo , Tânia parecia estranhamente bela. Sua pele, seus cabelos, adquiriram contornos estranhos... ela parecia uma figura alva, misteriosa e perigosa. Aproximou-se de mim lentamente, e colocou a mão sobre meu ombro. Seu corpo parecia emitir uma aura estranha . Senti algo como uma energia forte e pulsante me invadindo... e tudo pareceu mais tranqüilo. Minhas mãos formigavam.
- Fique calmo, Amadeu. Não sou uma bruxa. Bruxas não existem. Jamais pensei em fazer um pacto com o demônio nem nada parecido. Sou tão serva de Deus quanto você. Apenas fique calmo! Não vou lhe fazer mal! - Seus longos, lisos e negros cabelos pareciam cada vez mais brilhantes e soltos. Parecia uma criatura fantasmagórica.
- Sim mas... você...
- Acalme-se - Disse ela, fazendo-me sentar no chão. Eu ainda estava tenso e confuso.
- Você quer a sua filha viva. Quer que ela seja bela. Quer que ela gere muitos guerreiros fortes para o nosso império.
- S-sim... é isso que eu quero!
- Tenho certeza que sim. E por isso, você tem que salvá-la. E não há outra forma. A magia é a salvação. A magia é a única que pode exorcizar o demônio dentro dela. - A magia. A magia! Ela falava aquilo com uma convicção e força tão claras que tudo parecia amenizado. A magia já não parecia mais tão perigosa, nem tão distante.
- Mas... isso é um feitiço! Eu não posso estar sentindo isso! Você me enfeitiçou, bruxa! Me enfeitiçou... - De repente comecei a me sentir cada vez mais cansado. Sentia sono. Tudo parecia irreal a distante, como se não passasse de um sonho ruim.
- Não me chame assim. Eu não te enfeiticei. Preste atenção. Você terá de partir amanhã.
- O quê?
- Eu não posso curar sua filha, mas conheço quem pode. É o meu mestre.
- Seu mestre? - Disse eu, rindo sarcasticamente - O demônio? - Naquele momento, eu já estava alucinado...
- Não. Ele pode curar sua filha. Você precisa partir ao encontro dele amanhã. - Eu já não sabia o que fazer. Minha mente estava confusa. Seria possível que essa magia... esse poder do demônio curasse minha filha? E de que adiantaria?
- Não. Eu não posso fazer isso. Não posso...
- Então deixe sua filha morrer, ignorante idiota! É isso que quer? Ela vai morrer.
- Não! Ela não vai morrer!
- E como pensa que vai salvá-la? Não há outra forma. Não há. A magia é a salvação. A única.- não havia outro jeito. Eu estava convencido. Uma vontade imensa de entregar-me totalmente à aura daquela mulher me consumiu. Ela e sua magia pareciam tão atrativos que era quase impossível recusar. Não havia outra forma. Minha filha seria salva pela magia.
- Sim. Eu compreendo. Quero entregar minha filha ao poder mágico. Quero que a magia abrace e a tome. Quero torná-la súdita da magia. Quero que a magia a contenha por completo. Estou sentindo!
- Agora, sim! - disse ela, sorrindo de forma maliciosa - Um sopro de magia o revelou a verdade. Não há demônios, Amadeu. Há apenas a magia. Apenas a magia.
- Sim. A magia.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

Quando voltamos para casa, já era quase cedo. Anelita dormia como um anjo quando entrei no quarto. Entramos silenciosamente, para não acordar Petran. Deitei-me por apenas uma hora, quando ele bateu na porta. Anelita acordou antes de mim. Levantei-me instantes depois.
- Amadeu, vá se aprontar logo. Eu arrumei essa sacola para levarmos na viagem. Aqui há comida, cantis com água, roupas limpas e outras provisões. Os cavalos já estão lá fora. Aluguei-os. Não precisa pagar. Farei mais este favor a você, já que é um amigo antigo.
- Para nós viajarmos?
- Sim. Temos que sair em trinta minutos. Apronte sua menina.
- Petran... você não precisa ir.
- Não. Eu faço questão. Você não sabe exatamente o caminho até o poço. Ele fica a uma semana de viagem e você poderia se perder. Agora, ande!
- Não! - respondi, instintivamente. - Não precisa se preocupar, Petran. Eu sei como chegar ao poço. Não precisa pagar dois cavalos para isso. Acho que vocês já me ajudaram muito. – Petran parecia intrigado com o “vocês”. Me ollhou de forma estranha, pensativa. Nesse mesmo momento, vi que Tânia estava atrás dele, junto à porta, mas ele ainda não a havia percebido.
- Mas... é perigoso, Amadeu. Podem haver guardas na estrada.
- Não existem guardas nas estradas, Petran, e eles não poderão fazer nada. Estou levando minha filha ao poço. Tudo o que eles podem fazer é me ajudar a encontrar o local.
- Bem... não importa. Acho que devo ir com você, não importa em quais condições. Irei com você antes que faça mais alguma burrice. - disse ele, com segurança. Olhei para Tânia, expressando minha dúvida. Ela assentiu com a cabeça.
- Tem certeza de que quer ir nesse viagem, meu marido? Você estará perto de uma área cheia de leprosos. Pode ser contaminado. - disse ela.
- Tânia? Você está aí? Diabo... você anda estranha ultimamente, hein?
- Me desculpe se estava ouvindo essa conversa... é que o assunto é muito importante.
- Tudo bem... talvez você até tenha razão, Tânia... - disse ele.
- Ela tem! - interrompi.
- Mas mesmo assim, eu vou. Está decidido. Não tente me dobrar, Amadeu. Não vou faltar a esse ato honroso. Sua filha precisa ser salva. Apronte-se enquanto vou terminar de selar os cavalos.
Petran então saiu. Ficamos apenas eu, Anelita e Tânia, calados, olhando um para o outro. Anelita expressava a mais pura inocência. Ainda não entendia o que se passava. Olhei para Tânia. Estava perplexa e preocupada.
- Meu marido é um tolo... - disse ela, em voz baixa.
- O que faremos? - perguntei.
- Preste atenção. Você encontrará meu mestre na feira de Zealan, a vila vizinha. Ela fica a três dias de viagem a cavalo, mas do lado oposto ao poço. Petran não poderia ir nessa viagem de forma alguma... - respondeu ela, pensativa.
Fiquei apenas parado, fitando-a e admirando-a enquanto pensava. Voltei a sentir a ânsia de poder... voltei a vê-la envolta num aura de luz. Parei. Olhei para mim mesmo. Tudo parecia estranho e irreal. Tânia causava um atmosfera estranha no local. Olhei para Anelita para ver se sentia algo parecido mas ela parecia no estado mais normal possível. Esperamos, pensando, por mais dez minutos, quando Petran entrou novamente no quarto.
- Vamos. Os cavalos já estão prontos. Ainda não se aprontou?
- Já estou pronto. Não trouxe nada comigo. Ela também está.
- Então vamos.
Peguei então Anelita pela mão e saímos. Olhei mais uma vez nos olhos de Tânia antes de partir, sem saber o que fazer. Anelita, num último instante, virou-se para ela e disse:
- Obrigada, senhora.
--------------------------------------------------------

Aprontamos os cavalos e saímos. Petran saiu na frente, enquanto eu ia em velocidade menor, com Anelita na garupa. Começamos então a seguir o caminho para o poço. “Poço” era uma denominação adequada, já que a “cidade dos leprosos” não era algo muito diferente disso. Na verdade, tratava-se de um vale rochoso, uma fenda profunda, uma depressão enorme. Eu nunca soube como eles conseguiam comida lá. Imagino que eram alimentados por caridosos, talvez pela igreja. Definitivamente: Anelita não poderia jamais ir para lá. Porém, estávamos seguindo o curso contrário à vila de Zealan, onde eu poderia encontrar o mestre de Tânia. Eu não tinha outra alternativa. Levar Anelita ao poço era uma opção já descartada. Pensei em vários modos de despistar Petran, de convencê-lo ao voltar, mas ele estava decidido. Não é fácil dobrar a honra de um homem com conversa. Viajamos por três horas, e eu ainda não sabia o que fazer. Estávamos nesse momento no meio da estrada: uma grande extensão de nada que se seguia reta por um grande caminho. Comecei então a ficar aflito. Pensamentos a respeito de magia, de lepra, e da minha filha me invadiram, mas eu não conseguia pensar em solução alguma. Meu coração batia forte, e eu estava desesperado.
- Petran... se fosse com você... faria o mesmo que eu? - perguntei, ainda pensando no que fazer para me livrar dele.
- Minha filhas já são mulheres, Amadeu, e todas deram filhos para o Reino. Elas jamais se submeterão a isso.
- Sim, mas estou fazendo apenas uma suposição.
- Eu faria o que é certo.
- E o que é certo?
- Não sei, mas faria o certo.
Andamos por mais alguns minutos quando, de súbito, perguntei:
- Então não tem certeza de que o que estou fazendo é o certo? - Petran olhou para mim assustado. Eu expressava a raiva. Acho que ele pôde sentir o que realmente se passava.
- Você está fazendo o certo, Amadeu. - respondeu ele, ainda assustado.
- Não, não estou. Você não faria isso, certo? - cada vez eu falava em tom mais desafiador.
- Faria! Faria, Amadeu. Pelo amor do grande Deus! O que deu em você, homem?
- NÃO FARIA! - gritei, com toda a força que meus pulmões pudessem gerar. Anelita assustou-se, o cavalo também, e ela caiu no chão.
- MEU DEUS! - exclamei, descendo do cavalo. Petran também desceu. Peguei Anelita nos braços. Não tinha se machucado muito, mas eu me senti ferido. Virei-me então para ele, cheio de ódio. Não era fingimento. Eu estava possuído. Toda minha angústia e desespero transformaram-se numa fúria estranha, algo que eu jamais havia sentido antes.
- V-você queria isso, não é? Você mesmo disse que não sabe o que é o certo e quer levar minha filha para o inferno, não é?
- Amadeu, estamos indo salvá-la da danação...
- NÃO É? - gritei novamente, sem ouvi-lo.
- Você não deixaria sua filha morrer como uma escória suja e podre, condenada para sempre pelos infernos! Vocês não a abandonaria junto com o que de mais horrível há nesse mundo maldito! Não! Você fugiria para um caminho melhor! O único que poderia salvá-la!
- A-amadeu... não estou te entendendo! - Petran estava realmente apavorado. Eu jamais o havia visto assim. Era soldado velho e experiente, mas estava apavorado. Cada vez fui me aproximando mais.
- Entende sim, seu maldito crápula! Você queria ver minha filha morrer! Você me inveja, Petran, pois não é capaz de amar suas filhas mais do que eu amo a minha! E por isso você quer me ver sofrer, não é?
- Amadeu, você está louco! - disse ele, recuando para fora da estrada. Além daquilo não havia nada. Apenas pedras, lagartos e poeira. Então, cheguei mais perto e puxei o punhal, que estava guardado no meu cinto. Sabia que um dia seria útil. Petran ficou sem reação.
- Amadeu... não!
- Antes de morrer, maldito, quero que saiba que sua esposa é uma maldita bruxa! Uma bruxa! - disse eu, antes de enfiar o punhal em sua garganta.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

Foram dois dias e meio de marcha até Zealan. A previsão era, na verdade, de três dias, mas minha ansiedade era tão grande que até mesmo a água sobrou. A viagem fora cansativa. Mesmo assim, minha sensação durante toda ela foi de uma prazer e satisfação indescritíveis, mesmo tendo que suportar o choro de minha filha, provavelmente muito assustada com tudo o que havia acontecido. Mas eu me sentia gratificado, me sentia bem. A viagem foi bastante tranqüila. Não topamos com guardas do rei nem com ladrões, apenas com o Sol forte. Em tempo, estávamos finalmente chegando à feira de Zealan. Era uma bela manhã, e Anelita seria curada. Em nome da magia.

Ciro Inácio Marcondes

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui